Onde deveria estar

Onde deveria estar
Quando resolvi pegar um pedaço de papel e uma caneta, percebi o quanto de mim mudou. Parece que foi ontem, as palavras surgiam automaticamente formando ideias desenhadas nas páginas em branco, hoje a maioria delas continuam vazias, esperando... implorando por um pouco de atenção. A vida nos rouba o tempo e isso é irônico.
E não é menos irônico perceber que uma das poucas coisas que podia sentir orgulho, que era a capacidade de criar mundos paralelos em qualquer situação, já não faz parte do meu cotidiano. É quase uma afronta, algumas poucas linhas são capazes de sugar toda a minha imaginação.
Eu não sei dizer, ao certo, quando foi que me tornei "silêncio". Hoje eu olho em minha volta e tudo que sou capaz de ver é uma selva de pedras, empoeirada e barulhenta, com suas pessoas correndo atônitas de um lado para o outro e ainda faço parte dessa massa navegando em uma correnteza que não leva à lugar algum.
Depois de algum tempo a gente percebe que falar de mais incomoda, na verdade ninguém quer ouvir, ninguém tem tempo para relações sinceras e incondicionais. Quando uma pessoa pergunta "Como foi seu dia?" ela simplesmente está querendo te lembrar de que ainda não é hora de tirar a máscara que você carregou o dia todo, restrinja-se a dizer "bem" e não renda assunto.
É, aquela sensação antiga de que o mundo está vazio ainda é dominante, mesmo ela ficando quieta, sem doer, sem alarde. Se eu olho um pouco além dos prédios altos, pela janela, existe apenas um horizonte sombrio e, agora, sem interesse. Não adiantou de nada quebrar algumas grades, os muros são de concreto e aço.
Como seres humanos procuramos mudanças constantemente. Parece ser de nossa natureza não nos conformar ou, ao menos, aproveitar o momento. Estamos sempre em busca de algo mais. Como seres humanos nunca estamos satisfeitos e, quando alcançamos algum nível, nos lembramos saudosamente de um período anterior, com notas mais simples e cores mais leves.
As vezes, ou quase sempre, eu sinto falta do que já fui um dia. Sinto falta de sorrir sem motivo, de cantar uma canção aos gritos, de caminhar descalço sentindo o chão sob meus pés. E não é só falta, por si só, mas uma mistura com um sentimento de que eu peguei algum caminho errado nas bifurcações da vida. Pode ser que haja um mundo paralelo onde eu deveria estar e as vezes, só as vezes mesmo, eu queria voltar e pegar a estrada certa.
Talvez seja apenas eu que ainda olho além, não vejo mais ninguém ousando a olhar na mesma direção que eu e, por isso, é mais certo que eu esteja mesmo buscando a direção errada. Talvez eu queira mesmo sentir  um calor que queima, ter uma conversa que vai além do "como foi seu dia", mas não estou dizendo que isso é o certo. Talvez eu prefira ter um sorriso no rosto ao invés de tê-lo na foto do perfil do facebook, mas isso soa como dramaturgia, nem faz tanto sentido. Mas é que, mesmo pra mim, que sempre vivi naquele mundo paralelo, com meus personagens, sonhos e fantasias, sozinha, não consigo entender a relação de egoísmo, superficial e frágil que a humanidade se curva, vivendo uma realidade superficial de exibicionismo em uma página da internet.
Eu já cresci o suficiente para desacreditar no impossível. Alias, desacreditei de muita coisa, mas tem dias que eu só queria ter acordado há quinze, vinte anos e percebido que estava tudo onde deveria estar...

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